Brasil – Quando Marielle resolveu se candidatar à vereadora e brigar por uma candidatura feminista, negra, favelada e socialista, na verdade, a gente não imaginava que ela seria eleita. Digo, ninguém imaginava, nem ela mesma. Ninguém tinha ideia de que isso seria possível de fato.

A verdade é que a gente tem uma enorme dificuldade em elaborar o que é a democracia no Brasil. Porque para quem nasce numa favela, para quem é mulher, negra, o Estado só representa ou a tirania do seu braço armado ou a corrupção que a gente ouve falar e que, na verdade, é só a tradução do que a gente vê no dia a dia como a total ausência de todos os tipos de serviços e de garantia de direitos. Então, a democracia no Brasil sempre foi um ensaio, um ensaio que nunca chegou na favela.

Quando ela me disse que seria candidata, a princípio eu me preocupava com o tempo que isso demandaria dela porque o trabalho era prioridade pra Marielle e eu via o quanto ela já se dedicava na Comissão de Direitos Humanos durante o mandato do Marcelo Freixo. Eu me preocupava de que seria exaustivo para ela. De fato, naquela época a gente não tinha a dimensão do que a eleição dela significava em relação à mudança das estruturas de poder e, tampouco, do quanto isso poderia ser arriscado. A gente só sabia que era importante, que tentar colocar isso para a sociedade importava.

Quando a Marielle foi eleita com 46.502 votos – a quinta vereadora mais votada do Rio – uma cidade completamente dependente da favela e das periferias, que não amanhece sem o trabalho de centenas de milhares de favelados – foi como se a gente tivesse descoberto, de fato, que era possível fazer outra coisa na política. A alegria dessa eleição era como um grito que estava entalado na garganta. Anos e anos de sub-representatividade.

Isso foi a mandata da Marielle: um trabalho duro de enfrentamento à lógica do poder e criação de novas formas de fazer política. Eu tinha muito orgulho do que ela estava fazendo. Apesar de querer que ela estivesse mais tempo em casa, eu sabia que ela estava transformando radicalmente a política e a cidade. Ela representou para milhares de pessoas que votaram e que depois se aproximaram do mandato, essa possibilidade de outra forma de representação e atuação na política: mais coletiva, mais humana, ousada, que falava das demandas do povo e que enfrentava constantemente o poder instituído.

Na noite do dia 14 de março de 2018, quando a Marielle foi assassinada, esse processo de avanço da democracia se rompeu. O assassinato da Marielle é o marco político de mais um processo de interrupção da democracia no Brasil, que começa com o impeachment da Dilma, que levou Lula à prisão, que elege Bolsonaro à base de fake news e ódio e que hoje, além de não dar nenhuma resposta sobre o principal crime político da nossa geração, tem colocado sistematicamente diversos crimes sob sigilo de 100 anos. Crimes contra a humanidade, crimes que revelam o tamanho do buraco que esse governo tem deixado nesse país em todos os níveis. A eleição de 2018 traz à tona todo o lixo de 20 anos de ditadura e de séculos de um Brasil inacabado.

É muito difícil pensar nisso, que é, com certeza, o episódio mais difícil da minha vida pessoal, refletindo sobre o significado disso para o Brasil como um todo. Ser vereadora hoje e refletir sobre o que foram os últimos 4 anos de avanço da extrema direita nesse país é sufocante. Porque de lá para cá a ameaça à democracia cravada como alvo nas nossas costas; de parlamentares eleitas, de defensores de direitos humanos e, como vimos durante a campanha no primeiro turno, de qualquer opositor ao governo.

E, sinceramente: é difícil mesmo dialogar com uma grande parcela da população, que nunca teve acesso a direitos democráticos básicos, para dizer que ela precisa defender a democracia, mesmo que seja uma democracia incompleta e ainda muito frágil. Mas, infelizmente, sempre dá para piorar e, quando piora, piora muito mais para quem está na base da pirâmide social.

Eu entendo esse sentimento de quem não quer saber de política, porque a vida na favela não vai mudar, e porque entra governo e sai governo e as pessoas continuam sem o direito de viver plenamente nesses territórios. A política na favela se apresenta na sua pior face, a politicagem assistencialista. É verdade. Mas é também verdade que muita gente só descobriu que havia uma vereadora negra favelada, que diariamente brigava pelos nossos direitos na Câmara do Rio, depois que ela foi assassinada.

É preciso admitir que a política faz diferença na nossa vida e não porque ela é ótima ou limpa, mas porque ela faz diferença no preço do mercado, ela faz diferença na quantidade de vagas na escola pública, faz diferença se tem vacina no SUS. Então, eu queria mesmo que as pessoas lembrassem da Marielle e fossem votar pela democracia nessas eleições.

Que elas fizessem essa reflexão de verdade e votassem por Marielle, por quem nesse país não aguenta mais uma política de extermínio, de ódio, que não permite que a democracia avance como deveria. Para isso, não tem como se anular, é Lula ou aceitar a barbárie – essa que é conivente com o assassinato de Marielle – e que comemora seu extermínio.

Hoje, eu cedi meu lugar da saudade porque eu preciso honrar a memória de quem foi a minha mulher, e ela certamente estaria do lado daqueles que defendem um Brasil melhor. Não tenho como fazer isso sem me posicionar sobre de que Brasil estamos falando. Só há dois lados nessa eleição: o dos que defendem a democracia e dos que defendem a barbárie.

Fonte: Revista Fórum

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