Desde a eclosão da atual pandemia de coronavírus, o mundo cinematográfico foi chacoalhado não só pelos impactos econômicos da doença, mas também por uma série de adaptações e anúncios que parecem medidas de exceção, mas que podem apontar para transformações profundas na maneira como consumimos filmes.

Encurtamento das chamadas janelas de exibição, grandes estreias indo direto para o streaming, produções nacionais feitas com dinheiro público pulando as salas de cinemas. Essas são questões presentes no dia a dia do setor desde o primeiro semestre.

Adotadas como formas de burlar as restrições da Covid-19, elas tocam em pontos sensíveis da relação entre produtoras, distribuidoras e exibidores. O trio vive um casamento conturbado e de difícil equilíbrio, e o desgaste só foi ampliado nos últimos meses.

Essa crise matrimonial deve se agravar ainda mais em setembro, quando a versão live-action do clássico animado “Mulan” estreia direto no streaming em diversos territórios importantes, como o americano -ainda não há notícias sobre a estreia no Brasil.

A releitura da animação de 1998, graças à popularidade de sua heroína e ao gordo orçamento, era uma das grandes apostas do ano para as bilheterias. Com o adiamento de sua estreia no início da pandemia, se tornou uma das esperanças para encabeçar a eventual reabertura dos cinemas, ao lado de “Tenet” e “Os Novos Mutantes”, que recentemente chegaram a vários territórios -o segundo já desapontou nas bilheterias americanas.

Mas a Disney pegou todos de surpresa com o anúncio de que “Mulan” iria direto para seu streaming, o Disney+, em vários lugares. Agora, quem é da indústria aguarda para saber quais serão os resultados -o público estará disposto a pagar um valor extra de US$ 30, ou cerca de R$ 170, além da assinatura do serviço, para ver o longa ou ele não será capaz de faturar o mesmo que pelas bilheterias tradicionais?

“Essa é uma aposta que parece democrática, mas não é”, diz Lia Bahia, professora de cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing. “O serviço deles não está em todos os territórios e o aluguel desse filme é caro. Mas é um projeto piloto que, se der certo, pode abrir uma porta.”

Isso porque o eventual sucesso de “Mulan” no streaming teria praticamente todos os seus lucros concentrados nas mãos da Disney. Não haveria porcentagem para o parque exibidor, por exemplo.

Segundo Daniel Queiroz, da distribuidora Embaúba Filmes, estamos colhendo, atualmente, os frutos de um mercado que caminha há anos para uma monopolização.

“Os estúdios, além de lançarem filmes direto no streaming, estão criando suas próprias plataformas, como é o caso da Disney. Então nós temos a Disney explorando seu filme diretamente desde a produção até a outra ponta”, diz.

Ainda segundo ele e Bahia, a professora, o que vemos hoje no mercado não são transformações causadas só pela pandemia, mas uma aceleração de mudanças que já estavam em curso ou no radar.

Prova disso é que essa equação ficou ainda mais complexa com uma decisão judicial que independe do coronavírus. Um juiz federal dos Estados Unidos anulou, no mês passado, uma histórica lei antitruste que vigorava desde os anos 1940 e que proibia que estúdios de Hollywood tivessem seus próprios cinemas, para que não controlassem completamente tanto a produção quanto a distribuição de seus filmes. Soa familiar?

“Com o fim da lei, os estúdios podem ter salas. Se isso começar, vai ser uma loucura”, diz Bahia. “Dito isso, eu acho que as salas de cinema não vão acabar, mas talvez haja um enfraquecimento. Talvez as janelas se encurtem ainda mais, talvez haja uma elitização, mas o cinema ainda é um termômetro importante.”

Ela alerta ainda para o fato de que a Disney, dona de marcas como Pixar, Marvel e Star Wars, se tornou um megaestúdio depois da compra da Fox, outra peça importante no tabuleiro de Hollywood -“existem eles e os outros”.

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