Menos de um mês após a maior crise militar desde 1977 no país, Jair Bolsonaro voltou a incomodar altos oficiais das Forças Armadas com o que consideram uma bravata: o uso do Exército contra medidas de restrição para combater a Covid-19.

Durante sua visita a Manaus na sexta (23), o presidente disse à TV A Crítica que “nossas Forças Armadas podem ir para rua um dia sim (…) para fazer cumprir o artigo 5º [da Constituição]: o direito de ir e vir, acabar com essa covardia de toque de recolher, direito ao trabalho, liberdade religiosa”.

Para membros da cúpula militar ouvidos nesta manhã de sábado (24) pela Folha, Bolsonaro confunde conceitos e usa sua posição de comandante-em-chefe da Forças Armadas de forma política, para pressionar adversários como os governadores João Doria (PSDB-SP) e Rui Costa (PT-BA).

O presidente, que já causara contrariedade anteriormente entre oficiais-generais ao insinuar que “o meu Exército” iria combater as restrições, desta vez foi mais detalhista ao desenhar o que pretende fazer.

“Nosso Exército, as nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso, vai ser cumprido”, num trecho observado por um almirante como tentativa de asseverar autoridade.

Juridicamente, a ideia do presidente é uma salada que foi vista como esdrúxula por integrantes do Supremo Tribunal Federal, onde qualquer ação mais radical de Bolsonaro invariavelmente iria acabar.
Na entrevista, ele disse que direitos fundamentais de ir e vir e de associação são tolhidos pelo toque de recolher. Como instrumento para sacar a carta militar, usou o surrado artigo 142 da Constituição, que dispõe sobre o emprego das Forças Armadas.

No texto, os Poderes podem requisitar o uso de força para manter a ordem pública. Aí entra o truque retórico de Bolsonaro, que na entrevista afirma que tem um plano discutido no governo para “o que fazer se um caos generalizado se implantar no Brasil pela fome”.

No discurso presidencial, medidas que visam coibir a circulação do novo coronavírus, que de resto nunca chegaram perto de um lockdown com exceções pontuais, são as responsáveis por desemprego e miséria.

Como é usual, ele culpou o Supremo por “lamentavelmente” ter dado poderes aos governadores e prefeitos, o que é uma leitura torta: a decisão da corte visava suprir justamente a ausência de ações de governo no começo da pandemia.

O fato de Bolsonaro ter demorado quatro meses para restabelecer um auxílio emergencial quando a pandemia recrudescia naturalmente não entra na fala.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), inclusive está discutindo a recriação de mecanismos do chamado Orçamento de Guerra, para aumentar o poder de fogo reduzido da ajuda neste ano.
O orçamento, aliás, em 2020 foi aceito pelo governo a partir de uma proposta que envolveu Congresso, Supremo e Tribunal de Contas da União, sem iniciativa por parte do Planalto.

A questão é que, na prática, o caos que há no país é sanitário, com as quase 400 mil mortes da pandemia. Na visão de oficiais, não há nada que demande ação militar, no sentido de violência ou saques sistemáticos de supermercados, por exemplo.

Sobre as declarações de Bolsonaro na entrevista em Manaus, Doria afirmou: “A postura demonstra mais uma vez o quanto Bolsonaro tem devoção pelo autoritarismo e alergia a democracia. Ele selou um pacto com a morte que só não é maior no Brasil por conta da ação de governadores e prefeitos”.

Há temores, tanto entre militares quanto entre políticos e membros do Judiciário, do agravamento da crise social e eventuais instabilidades, mas nada parecido com o caos iminente pintado pelo presidente.
Há aqui um padrão. Em 2019, quando o Chile enfrentou protestos maciços de rua, Bolsonaro também balançou a ameaça de crise no Brasil para insinuar que poderia tomar medidas de força. Não deu em nada.

Em 2020, ao longo da crise institucional do primeiro semestre, quando participou de atos pedindo o fechamento de outros Poderes, Bolsonaro usou o quanto pôde a imagem das Forças Armadas.

Tudo isso se acalmou até a piora da pandemia, quando o presidente cobrou do então ministro Fernando Azevedo (Defesa) mais apoio político nas Forças. Bolsonaro estava agastado com o comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que havia rechaçado publicamente a ideia de envolvimento do serviço ativo com política.

Isso devido ao fato de que a imagem do Exército estava sendo corroída pela criticada administração da crise sanitária pelo general Eduardo Pazuello, que acabou demitido da Saúde e deve ser o alvo principal do começo dos trabalhos da CPI da Covid no Senado.

O resultado foi a demissão de Azevedo, seguida pelo pedido conjunto de saída dos três comandantes de Forças, transformado por Bolsonaro numa demissão pelo novo ministro, o general Walter Braga Netto.
Na escolha dos novos comandantes, contudo, pacificou um pouco a situação interna, dado que eles indicaram que seguiriam exatamente a linha de seus antecessores.

Para militares, as falas de Braga Netto mais alinhadas a Bolsonaro, como no episódio em que ele disse que era preciso respeitar o” projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”, são apenas para consumo externo.

Mas alguns políticos tomaram nota do fato de que o presidente citou o ministro nominalmente ao delinear seu “plano contra o caos”, mantendo cautela acerca de suas reais intenções.

Seja como for, as medidas usuais de intervenção para situações de calamidade, estado de defesa (mais pontual) ou de sítio (no país todo), dependem do Congresso para serem aprovadas -ou seja, seriam de difícil aprovação hoje.

Os militares seguem enredados no cipoal em que se meteram ao permitir a associação de imagem com o governo e ao auferir vantagens como sua reforma previdenciária e de carreira.

Créditos: Notícias ao Minuto

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